sábado, 26 de julho de 2008

Um companheiro de viagem

Viajar é muito bom, mas mineiro gosta mesmo é de voltar. Às vezes tenho a impressão de que gosto tanto de uma viagem pelo prazer de, depois, voltar pra casa, para os meus,
E na volta (e de volta), desta viagem em especial, ganho ainda as seis horas que perdi, nesse tal de fuso horário. Aliás, tenho a impressão de que quem inventou o fuso horário inventou junto a saudade. É estranho esse negócio das horas que se cruzam e se misturam aos sentimentos para nos falar e lembrar de pessoas e lugares presentes e ausentes.
Juntando tudo, quero partilhar com vocês aos poucos, minhas impressões e, não sei fazer de outra forma, sentimentos em relação aos lugares, experiências e pessoas que conheci, com especial atenção às paisagens humanas. Gente me interessa.
Mas, desde já, previno: são MINHAS impressões e sentimentos. Não os tomem como verdade absoluta. É o meu modo de ver e sentir que transpareço para vocês, meus companheiros virtuais e pessoais. São marcas em mim, que exponho a vocês. É minha cara na janela.
Outro alerta: continuo à flor da pele. Até mais que antes, com os sentidos e afetos ampliados, curiosos, atentos.
Entre tantas razões e motivos, um é especial. Um companheiro de viagem; um livro.
Sempre que viajo, trago um livro. E leio. Como viajo muito, li muito ao longo da vida. Nos hotéis e pousadas, pelo mundo afora, há sempre um banheiro, meu caro Nilo...
Mas desta vez foi diferente. Apesar dessa viagem ser um sonho de vida, não entrei nela de pronto. Por razões também diversas, só me percebi a caminho quando o avião decolou. Talvez até depois. Minha mala foi arrumada só na véspera, pelo cuidado da Laila. Era como se eu não quisesse ou não acreditasse que iria viajar. Não arrumei quase nada, esqueci o livro. Pelo menos o que eu já havia separado, em pensamento.
Mas a Laila trouxe o seu livro. Ela também tem esse hábito saudável. Eu o vi em Paris, ele olhou pra mim, assim meio de banda, de dentro de uma mala entreaberta. Cheguei a lhe dedicar um folhear de dedos, mas eu estava em Paris e havia muito o que ler, lá fora, nas ruas, fachadas, monumentos, museus, jardins e pessoas. Principalmente nas pessoas. Gente me interessa...
Do entreaberto da mala o livro sorriu e sussurrou: você não perde por me esperar... E do título “A menina que roubava livro." (Markus Zuzak –Ed. Intrínseca), soprou uma lufada de vento, trazendo junto 480 páginas cheias de palavras que reacenderam as brasas da minha memória...
Eu não fui um menino que roubou livros, mas os busquei desde o momento, entre os seis e sete anos, em que comecei a juntar letras e formar palavras que me revelavam um mundo que veio a ser uma das minhas paixões.
Nessa ocasião meu pai comprou um dicionário, pequeno e grosso que tinha, como todo dicionário, milhões de palavras. Mas havia também ilustrações belíssimas que eu desvendava maravilhado, ansioso em ligá-las às palavras ainda desconhecidas.
Tenho na memória o dia da compra desse dicionário. Ele veio pelas mãos de uma mulher elegante, que chegou lá em casa à tarde e ficou até a noite, para desespero da minha mãe. Era uma vendedora de livros. Papai comprou o dicionário, não sei se para ficar livre da mulher ou da impaciência da Dona Tutu. Hoje ele esta no acervo do meu irmão caçula, o Frederico. Quando chegar, quero tocá-lo, folheá-lo com meus dedos ainda de menino...
O primeiro livro que sentei e lê, sozinho, foi "As mais belas estórias" de Lúcia Casassanta. Depois veio a coleção "Tesouros da Juventude", quando conheci Robson Crusoé, Marco Polo, Dom Quixote, o Barão de Munchausenn, os três mosqueteiros, o guarani e muitos outros.
Esgotado o estoque doméstico, o menino virou um caçador de livros. Na casa do meu tio Iracy e da Tia Délia descobri uma preciosidade: uma bíblia enorme, em quatro volumes de capa vermelha, cheia de ilustrações belíssimas. Muitas delas pude reencontrar e reconhecer, agora, nas paredes do Museu do Louvre. Meu interesse infantil não passou despercebido. Quando me casei, minha tia me deu a Bíblia de presente.
Mas o menino não esperou o presente futuro. Ao longo de meses, leu a Bíblia toda, como quem lê um romance ou um livro de aventuras, ainda sem o olhar da fé, mas com uma curiosidade atenta que viria a ser preciosa. As palavras ficaram guardadas na memória intelectual e foi só proporcionar um reencontro, anos mais tarde, com a memória afetiva, no território do Sagrado, para que elas se revelassem Verbo e, no Princípio e Fundamento, paixão, desejo e missão.
Outro cantinho cheio de letras era um cômodo na casa do meu amigo e vizinho, hoje meu compadre, Fernando Cyrino. Havia uma estante cheia e variada. Comecei por uma vasta coleção da revista Seleções e terminei com Guimarães Rosa. Um belo progresso, convenhamos.
Antes de tudo isso, não posso me esquecer, fui apresentado à magia das historias lidas ou narradas por outros através dos sermões em capítulos do Pe. Candinho na missa das crianças da Paróquia da Lagoinha, e da leitura emocionada e fantasmagórica do Neném Carcará, nosso vizinho, que juntava a meninada para ler, vejam só, Monteiro Lobato. No lugar da televisão, que só chegou à minha casa quando eu tinha uns doze anos, “As caçadas de Pedrinho”, “As Reinações de Narizinho”, eram minhas companheiras de sonho e fantasia e o início de uma longa história de amor pelas palavras escritas.
Por isso e muito mais o livro mexeu comigo. E pacientemente me esperou chegar ao Líbano...
Lá, com mais tempo, no alto das montanhas Chouf, tomei, enfim, o volume em minhas mãos. Na contracapa uma quase advertência: "Quando a Morte conta uma história, você deve parar para ler..."
Assustado, curioso, li. Quase de uma sentada. Não, na verdade não li, o livro me leu. Não sei se você já reparou, mas há livros que lemos e livros que nos lêem. Ou nos quais nos lemos...
"A menina que roubava livros" foi assim. Me li e reli em cada palavra. Meu coração e minha pele estavam lá, como um espelho no qual me reconhecia nu, depois de um longo banho.
O que li em mim, passo agora a lhes contar.
Eduardo Machado
25 de Julho de 2008



Gente, esse texto é de um amigo que não vejo há muitos anos, pois ele mora em BH e eu, em Brasília. Nas raras vezes em que vou a BH, nunca o vejo, pois ele está sempre viajando. Ele é professor, como muitos de nós, e é um apaixonado por livros, como todos nós.

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